Boa Vizinhança


     Um galo atravessa a estrada pela passadeira após passar meia-hora à volta da mesa de pingue-pongue pública. Chamei-lhe Galo Andrade, pareceu-me que encaixava. Não sei se por juntar as duas palavras, galo e Andrade, aniquilando de forma suave a última letra do galo. Talvez por se ficar na dúvida se é um galo, uma gala ou uma ordem para galar. Bom, o que interessa é que sendo um galo morador no centro da cidade, aprendeu, além das características comuns à sua espécie como lutar e galar, a atravessar solenemente uma passadeira. Espante-se o leitor: aprendeu-o a fazer enquanto o sinal verde está aceso. É à realidade que se vai buscar a ficção, sendo que muitas vezes a primeira ultrapassa a segunda em inventividade. Também se pode ter dado o caso, como muitas vezes se dá, de o observador ter tirado de um caso único uma conclusão geral. 
     Digo que o Galo Andrade aprendeu algo além das características comuns à sua espécie, e não naturais à sua espécie pois, “natural”, é palavra que anda um pouco desligada da sua natureza. Exponho o simples caso dos sumos naturais: a fruta nasce das árvores, isto é ponto assente. Sendo que para ter aquele tamanho que lhe conhecemos, andaram a fazer maroscas com enxertias e atos do género. Juntam umas peças de fruta, da mesma ou de várias espécies diferentes, consoante o gosto do bebedor, trituram-nas manual ou mecanicamente e vertem o resultado líquido num copo, às vezes de plástico. Ora, a meu ver, é mais natural um galo cruzar uma passadeira em pleno sinal verde.
     Observar um jardim, com animais e lagos artificiais, no meio da cidade é tão interessante como observar um engarrafamento numa vila pequena. Há um fascínio ao perceber que ambos os contextos estão desalinhados com a realidade envolvente como se fossem um organismo a ser estudado num tubo de ensaio. O transeunte que passa no jardim e se delicia com o verde, nunca deixa de ter presente que logo ali ao virar da esquina estão as buzinadelas, os prédios altos, o hospital central, os vizinhos que não se conhece ou as inúmeras oportunidades de negócio e de endividamento. E se por momentos a memória destes factos se dilui um pouco, logo vê um galo a atravessar a passadeira e o piano da realidade é lançado do quinto andar do prédio em frente sobre a sua cabeça. Também o condutor preso no engarrafamento da vila pequena sabe que, mesmo irritado com essa anomalia rodoviária, em poucos minutos aquele alvoroço passará e o silêncio reinará junto com alguma novidade matrimonial, o som da bola na televisão do café central ou no pátio em frente à escola primária, o “bom fim-de-semana” de algum vizinho do qual se sabe até com quem perdeu a virgindade ou a operação stop feita, com um único jipe antigo da GNR, por dois polícias barrigudos muito convictos do seu papel de autoridade campestre.
     O que o Galo Andrade não sabe, e talvez seja melhor nem imaginar, é que membros da sua espécie, habitantes noutros vales, não tenham aprendido a cruzar estradas em segurança e dentro das obrigações da lei e que alguns, talvez muitos, tenham até menos espaço para caminhar e ganhar músculo do que ele. Há ainda a dizer em defesa dos galos campestres: poucos têm a sorte de ter um semáforo à porta de casa, o que os impossibilita de treinar diariamente como o Galo Andrade; a esperança média de vida é mais reduzida; a causa de morte costuma ser sempre a mesma, e não é atropelamento. 
     Não sendo um galo de grande estatura o seu bico está pouco acima da altura do tubo de escape, mas excepto pelo gás carbónico que inspira cada vez que passa a estrada, o Galo Andrade é um privilegiado. Comida a tempo e horas, lagos limpos a cada duas semanas, pouca concorrência, um harém considerável e a ausência de predadores naturais. Já descontando os pedaços de pão que alguns cidadãos oferecem aos pombos e que ele, galantemente, rouba. Privilégio é uma palavra difícil de pronunciar com o papo vazio.
    Devido a esse estatuto do meu vizinho Galo Andrade, e porque me tornei seu fã, aguardo com entusiasmo para vê-lo dentro em breve a jogar pingue-pongue. Como referi tenho-o visto à volta da mesa em observação e creio que está prestes a destrinchar a lógica do jogo. Neste momento, em todo o jardim, ou seja de ambos os lados da estrada, o adversário com mais arcabouço para um duelo memorável é o Pato Abílio, que desenvolveu a capacidade de entrar e sair do autocarro, em início de turno, pela porta dianteira e traseira, respectivamente.

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