Oito impressoras

     Ouvi falar de um homem que comprou oito impressoras num leilão on-line. Acho que era um bom negócio. É importante estar sempre à procura do mais barato porque os recursos são escassos, quase toda a gente sabe. E também para comprar mais pelo mesmo preço acabando por ficar com o mesmo: muito. A intenção era boa: oferecer umas quantas impressoras aos familiares, pois dá sempre jeito pôr no papel aquilo que está na nuvem, e vender outras tantas ficando idealmente a custo zero aquelas que ficaram para a herança. Creio que no final algumas ficaram atrás da porta da despensa ou empacotadas no vão das escadas, negócio com potencial. As impressoras sempre foram conhecidas pela sua resistência em demonstrarem os seus atributos e também pela capacidade fortíssima em não trabalharem, terem vida útil curta e sempre se queixarem de alguma coisa, geralmente tinta, às vezes conexão. Deve ser difícil gerir oito impressoras, cada uma com a sua personalidade, as suas faltas, o seu desalinhamento de folha A4, os seus ruídos estranhos na hora de imprimir, as pequenas gotas de tinta que ficam à deriva na folha a tentar encontrar as suas letras, desprovidas de função prática. O homem podia ter comprado só duas impressoras: uma para si e outra para oferecer. Era justo, era sábio, aprovaríamos. Mas será que a pessoa a quem ele pensou dar a impressora precisava dela? Será que ele pensou em alguém antecipadamente? E será que ele próprio precisava de uma impressora? Uma talvez não, talvez nem a tivesse comprado, mas oito àquele preço foram demasiado sedutoras.

    Há uns anos encontrei uma impressora parada em casa dos meus pais, sem uso devido a uma alguma avaria não física. Uma daquelas avarias que confirmam que as impressoras têm personalidade e que a certa altura se cansam de estar ao serviço, sentem-se humilhadas por tantas vezes que tiveram de imprimir sem tinta suficiente dando à luz um papel com letras muito sumidas ou, pior ainda, com as cores trocadas: azul em vez de preto, sacrilégio, rosa em vez de vermelho, crime, algo em vez de amarelo, desleixo. Peguei nela com todo o carinho e felicidade de quem vai finalmente ter uma impressora sua na vida, ainda que extraída aos pais, e levei-a daquele abandono de escritório para o aconchego da minha sala. Deixei-a repousar na sua nova casa enquanto me habituava à ideia de não ter mais que ir com a minha pen drive (ou caneta de passeio) ao cibercafé do bairro onde morava, imprimir cada folha a dez cêntimos. Ia subir na vida, imprimir a partir de casa, talvez até a partir de bluetooth, essa outra tecnologia com personalidade forte da qual não consigo falar agora para não me irritar e perder o fio à crónica. Dente azul é dente podre! Na noite fatídica em que a tentei instalar no meu computador fui mal sucedido, na manhã seguinte também. Pedi ajuda a amigos entendidos no assunto e ninguém me conseguiu ajudar. Não procurei um especialista, por forretice, mas mantive a esperança durante uns dias, enquanto fazia mais algumas tentativas. Depois desisti, arrumei-a e assumi de cabeça baixa que teria de voltar a imprimir no cibercafé, que a minha escalada social em direção ao conforto e às boas impressões tinha sido mal sucedida.

        Meses mais tarde, em plena mudança de casa, e após ter dado e vendido muita coisa a familiares e amigos (louças, móveis, electrodomésticos, roupas, tapetes) olhei para a impressora. Não a podia vender, pois tinha sido retirada da casa dos meus pais, mas também não me sentia bem em dá-la, pois não funcionava, ou não funcionou comigo. Ao conversar com os homens das mudanças percebi que um deles era um entusiasta da informática, dos jogos, dos filmes, dos programas, das bugigangas. Falei-lhe da impressora e vi um sorriso esboçar-se-lhe na cara. Ele acreditava no potencial daquela máquina, ele parecia saber como convencê-la a imprimir,  sua função primordial. Este homem não tinha oito impressoras mas tinha mais de quarenta consolas de videojogos e talvez mais de duzentos jogos. Senti que tinha o perfil indicado e dei-lhe a impressora. Fui feliz nesse momento.

        Pelo que soube o homem das oito impressoras acabou por se aposentar. Talvez para fugir à tralha que tinha acumulado durante a vida activa, começou a viajar. Viajar implica escolher o que pôr na mala, e se não se quiser ser um burro de carga, implica reduzir drasticamente a quantidade de objectos que se usa no quotidiano. E entender que muitos dos objectos que consideramos quotidianos não são usados mais do que uma ou duas vezes por ano. Com isso aprendeu a andar mais leve e a transportar o essencial. Mas ainda assim ele tinha os seus pequenos prazeres, os seus objectos-fetiche. Um deles era pescar, e pescar implica uma cana. Pelo que ouvi dizer, neste momento tem espalhadas algumas canas pelo mundo, em casas de amigos e familiares onde fica hospedado. Não menos de duas, não mais de oito.

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