Doutor
em homenagem a Aldir Blanc, compositor e cronista brasileiro
Doutor, ela ligou o rádio e eu não quis escutar. Não acha que tenho razão? Farto de ouvir notícias ruins, estou eu. Quero lá saber pormenores, se foi infecção, se foi trombose, ou se foi só tristeza. Só não, que essa mata até antes da hora. Uma pessoa sente assim aquela pontada no peito que não dói. Ou seja, dói mas é mais na imaginação, na fundura do miolo. Sabe, eu nunca privei com esse sujeito. Nem no bar, nem no boteco, nunca me cruzei na rua com ele, nem fiz aquele aceno envergonhado de quem venera mas sabe que não tem muito o que dizer. E realmente, às vezes, ficar calado é o melhor que fazemos. Há aquelas pessoas que dizem piadas nos velórios, eu admito que até já ri e fiquei mais bem-disposto e pronto a comer mais uma bolachinha, mas não é o meu estilo ser eu a puxar o riso dos outros quando os vejo com caras tão sérias. Sei lá como é que eles estão lá dentro! Se têm para lá louças antigas em cima de um armário bambo. Custa-me arriscar e dou só uma palmadinha nas costas ou, se tiver confiança, um abraço mais demorado. E aí sente-se bem se a pessoa está mesmo triste ou se está só a cumprir o papel. Não gosto de ver tristeza falsificada, isso não! Dá-me azia. Prefiro saber logo: este chora e baba porque realmente já não tem espaço no peito, este está calmo e honestamente a prestar o seu respeito sem dramas. Agora, carpideiros a trabalhar de graça é que não, doutor! Fico fora de mim. Realmente irem embora as pessoas que gostamos é uma pena. Mas o senhor doutor sabe que senão também não cabíamos cá todos. É o que é, um a seguir ao outro. Fosse a terra infinita como o universo não havia mal nenhum, íamos ficando todos e era uma festa, nós a comermos bolachinhas feitas pela nossa tetravó, ou tataravó como dizem por aí. Pronto, a mãe do nosso trisavô ou a mãe da nossa trisavó. Bom, se são duas vamos dizer que uma nos dava bolachinhas e a outra nos ensinava a cavar, ou a ler, ou a fazer contas. Por acaso esqueci-me como é que se fazem contas de dividir à mão. A falta que nos fazem os antepassados!
Mas não era só isto que eu vinha falar, doutor. É essa coisa de escrever. Que bicho é esse? Sei lá como é que os outros vão ler o que eu escrevi. E eu próprio? Daqui a uns anos vou achar ridículo? Vou pensar que estava certo e não sabia? Vou perder tudo de vista com a idade? O doutor de certeza que tem lá para casa algum relatório do curso com algum erro ortográfico, não? Ou até uma artéria com o número errado na legenda? Uma pessoa sabe lá, se faz as coisas a pensar que se aguenta nas canetas até aos setenta e tal é um peso que nem se chega a pegar na esferográfica, se se estende o papel a pensar que amanhã é o dia derradeiro, escreve-se de uma maneira eloquente a tentar destilar as importâncias da vida e depois, aguentando o dia que se segue, e o outro e o outro, revê-se o que se escreveu e dá uma vergonha de criança, uma pessoa sente-se parva. E quando nos sentimos parvos parece que os membros até ficam meio desengonçados, e dá vontade de ser tartaruga para esconder a cabeça entre os ombros.
Sei lá doutor! É que eu aprendi tanto com aquele sujeito que agora fica um azedo sem sentido. Ele ofereceu-me sem saber uma catrefada de coisas, montanhas de palavras com imagens agrafadas e post-its com notas cáusticas como aquelas gomas que picam mas são doces. Se calhar o doutor não se lembra, é de outra geração, mas quando eu era menino havia uns melõezinhos verdes feitos de açúcar e corante… bom não interessa. A questão é que o sujeito me deu essas imagens todas e não tinha de me dar mais nada. Aliás, nem as imagens, mas sem elas nem o tinha conhecido e não teríamos esta conversa agora, porque sem assunto para que é que se conversa? Talvez por necessidade, sei lá! E agora vai-se embora o sujeito porque, como já vimos, a terra é pequena para cabermos cá todos ao mesmo tempo, e anda por aí muita gente a nascer, e eu fico aqui com o que ele escreveu e a perceber que ainda há tanta coisa para ler dele que eu nem sabia que existia. E entre ler o desconhecido e reler as referências também chega a minha hora. Mas fica-me uma ideia parva na cabeça. Coisa de fã, sem sentido. Eu queria só ter tido a sorte de o encontrar na barra de um bar, fazer um brinde a uma coisa sem importância e ouvir o tchin-tchin dos copos de cerveja, ver que com a emoção ainda entornei uma gotas no chão, ouvir uma gargalhada e quem sabe, se tivesse sorte, ainda ouvir uma pergunta retórica: “como é que vai a terrinha, oh portuga?”
Sabe aqueles bêbedos que há em todos os bares, que começam a falar, a gente por cortesia não os manda calar nem os ignora e de repente estamos colados àquele monólogo não conseguindo sair? E às vezes, não por cortesia mas por estupidez, fazemos alguma pergunta porque já não suportamos estar calados mas isso faz o bêbedo continuar ainda mais tempo. Até que finalmente temos coragem para fugir ou somos salvos por algum amigo que se apercebeu da situação. Pois eu sempre tive medo de ser um bêbedo desses. Já me disseram que não sou mas não dá para confiar nos amigos para essas questões, são necessários estranhos sem papas na língua nem medo de ofender. A ofensa às vezes é a melhor ajuda. É como se nos partissem o espelho na cara e com ele a imagem deformada.
Pois, para ser sincero doutor, eu acho que até foi melhor assim, não ter conhecido o sujeito pessoalmente. Vai que eu não ia com a cara dele, o tom de voz, o cheiro do sovaco. Que o encontrava num mau dia, ele me mandava à merda por uma pisadela não intencional e logo ficavam manchadas aquelas palavras todas que ele deixou. E me daria um trabalho gigante a limpar tudo outra vez e separar a obra da pessoa. Ou vai que eu estava bêbedo e chato nesse dia, lhe impingia um monólogo, e ele escrevia algo sobre bêbedos chatos e eu ficava com um misto de orgulho por ter dado ideia a uma crónica e uma vergonha muito grande por ter chateado um sujeito que tanto admiro.
Oh doutor, eu sei lá, a dúvida é uma puta inversa, a gente até pagava para não a ver nem ter intimidades com ela. É como a tristeza e a vergonha. Todas a trabalhar no mesmo bordel do peito. Mas pronto, diga lá o que é que acha disto, doutor?
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Doutor Blanc?
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Seu Aldir?
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Pois é, man, também acho que o melhor é não conhecer. Não calhou e não deixou de ter a importância que teve, como o sol que a gente não vê de perto mas a quem sente a luz e o calor. Fui da primeira geração de amantes do João Bosco e do Aldir Blanc, fico contente por haver uma segunda. Abraço
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