Noz

     O estado das coisas preocupa a matéria pensante. O corpo vai-se levantando cada manhã sabendo o que tem de fazer: respirar, verter águas e pedras, lavar atrás das orelhas, levar a colher à boca, pôr um pé no chão antes de cair. E mais que tudo: bater no coração, para que ele não pare de susto. A mente, essa, serve para ir abrindo os olhos. Esses berlindes de vidro onde se espelham os outros, e invertemos as miragens para nos encontrarmos. Cada imagem, uma pista do que nos rodeia. Cada arco-íris, uma esperança vã.
     As notícias são a janela do mundo, mas lá fora a rua muda de lugar e o sol altera a sua trajectória. Ao contrário das pequenas letras contratuais, que obrigam a cerrar as pálpebras para focar, as letras gordas dos jornais servem para escancarar os olhos. O periodista escreveu: “O Tejo está a morrer”. Eu também. Mas corrói-me que o nosso colosso morra antes de mim e agonie à minha frente. Sendo eu seu filho, que a partir das águas vê a luz da cidade onde adormece, sinto-me como se fosse seu pai, que acha contranatura o rebento fenecer antes de vingar. Um dia não haverá cacilheiro que caiba no seu ínfimo caudal e só a muito custo virá o rio morrer na praia. 
   Nascido na Serra de Albarracín, na fronteira entre Aragão e Castela, o Tejo é o maior rio da Península Ibérica. Além de extraviado para os campos de golfe de Múrcia, e seus tomates exportáveis, através de um transvase da época franquista, o Tejo dá as boas-vindas ao Rio Jarama que traz de Madrid mais lixo que água. Consegue pelo caminho até à foz ser retido em dezenas de barragens, arrefecer centrais nucleares e térmicas, e refrescar as sementes do arroz que comemos. Vemo-lo a passar dos miradouros lisboetas sem lhe ouvir uma única lamentação.
     Um dia, um candidato à câmara municipal de lisboa mergulhou de um bote da marinha para o Tejo e nadou meia centena de metros até à costa. Consta que, enquanto dizia olá às tainhas e adeus aos golfinhos, o agora presidente da república, engoliu um pirolito gourmet com hepatite B. Quase trinta anos passados desta chamada de atenção, de intenção eleitoral, parece hoje haver mais peixes no rio que aprenderam a boiar.
     No momento seguinte à desilusão, relativizo. Olho para o curso da cronologia e imagino o que veio antes dela. Todas as desmemórias que não me tiram o sono. Todas as nascentes madrugadoras que não me lavam a alma. E penso que no outro extremo da linha, lá bem no futuro, talvez depois do último pôr-do-sol se afogar no mar, este rio será um tempo imemorial e não haverá idioma para apontar o dedo a quem o matou.  
    Saio da casca e extrapolo: vivemos numa noz. Pequeno fruto outrora verde que nos alberga. Habitáculo que nos possui e que passa bem sem gente, inglórios a dividir pedacinhos de nada. Cadeias montanhosas são apenas as rugas superficiais. Trágicas cheias, leves gotas de orvalho. Tufões, poéticas brisas matinais. Terramotos, a semente a acomodar-se lá dentro. E nós aqui fora, a ver passar pelos dedos das mãos a nossa casa. Escorre o soalho entre o mindinho e o anelar, deslizam as telhas entre o médio e o indicador, e tentamos agarrar o pó que resta com o que nos trouxe até aqui: a pressão entre o polegar oponível e os outros dedos. Tão inteligentes e tão pouco sábios. Resta-nos pouco mais que tomar banhos curtos, comprar menos coisas, comer mais vegetais, plantar as árvores certas no sítio indicado, andar a pé e ser amigo do nosso amigo, essa pessoa biologicamente incógnita e humanamente infinita.        
     No fundo não interessa, mas talvez continue a valer a pena cuidar da noz.

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