Penas

      Caminhava pelo sopé da colina, na Praça do Martim Moniz, ao final da tarde. A luz reflectia nos transeuntes, e eu, acompanhado por um amigo, reflectia na vida. Já não me lembro em quê, mas ainda sinto o peso do sol outonal a descer-me no lombo, e da curvatura das costas de quem carrega na cabeça coisas a mais. O meu amigo parecia mais leve, embora sempre suspeite da carga dos outros por não lhes ver o interior.
       Vindos da Baixa, acho que me senti desalentado com o movimento das pessoas. Parecia que não valia a pena estar ali, não tinha nada para vender, nem tão pouco para dar, e muito menos vontade de comprar esperanças. Ao passar junto à paragem do eléctrico tentei esboçar um sorriso, endireitei as costas e olhei em frente. Não queria que os turistas, tão felizes à espera de vez na montanha russa, me vissem taciturno. 
      Ao verticalizar o corpo vi um senhor elegante, de bengala de madeira, com um andar gingão. Sondava a calçada com o bastão para a esquerda e para a direita. Entendi que nunca me veria, é cego, e não tive pudor em segui-lo com o olhar. Alto, vestia fato e usava colete ou camisola de malha por baixo do blazer. A memória inventa mais do que observa. Ao passar por ele pareceu-me feliz. Aí acreditei, porque com a carga que eu lhe imaginava em cima, não me sabia pôr no lugar dele. Pelo menos a sorrir.
      Logo a seguir, ou talvez um pouco antes, tocou numa esplanada perto um funaná distante. Música cabo-verdiana, rápida e dançável. Diz a lenda que Funa tocava acordeão, e a sua mulher, Naná, tocava ferrinhos. Não o triângulo, mas a lâmina de uma enxada friccionada por uma faca. O povo dançava enquanto se tocavam os dois, e nasceu o Funaná. As lendas nem sempre correspondem à verdade mas dão sabor ao raciocínio. Também dizem que o Martim Moniz se entalou na porta para os cristãos poderem entrar no castelo dos mouros. Eu acho que ele deve ter quinado com gripe, mas os heróis, já se sabe, não têm febres. Mal sabia ele que o estado será laico, um dia.
      Durante a divagação deixei o cego às minhas costas. De repente ouvi: “Viva África!”. Virei-me e lá estava ele. Com um sorriso nos lábios maior do que antes, e a mexer as ancas afincadamente em sincronia com a esplanada bailável. “Viva Cabo-Verde!”. Fiquei assim, sem palavras. Ou seja, apenas duas. A bengala, ao dançar com ele, servia de apoio e companheira, e ele regozijava. Ondulava o braço livre no ar e partia-se em três: cabeça, tronco e membros. As pedras da calçada não choraram, mas brilhavam em agradecimento ao raro calceteiro. 
       Um corpo, quando solto, pode muita coisa. A dança era sinónimo de vida e eu senti-me inútil por ainda não estar a sorrir. Não conseguia ver aquela canção pelos olhos dele, nem esquecer a visão da sua dança. De repente, olhei para dentro e dancei timidamente. Era de graça ser feliz. Sorri. Que folguedo! Dancei um pouco mais. Alguém tirou uma foto mas eu não prestei atenção, só ouvi o flash. Acho que foi ao eléctrico que chegava. 
      Não sei de que época sou quando danço. O tempo esbate-se e com ele a trivialidade dos problemas. Um motorzinho, que cresce ao som do descontrolo, ocupa primeiro o peito, depois as pernas, a seguir os braços. E por aí fora. Quando damos conta temos retinas em cada poro, viradas para o interior. Para o que não se vê mas que sabemos que existe. Júbilo! 
       Abri o olhos para caminhar sem tropeçar. Olhei para o meu amigo e o desenho dos seus lábios era o mesmo que o meu. Trocámos algumas palavras de felicidade. Já não me lembro quais, mas ainda sinto o bando de pássaros a bater as asas por cima de mim, e pensar que a dança é o voo dos condenados ao chão.

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