Palavra Maiúscula
O assunto era o mesmo. Ou todos os assuntos viravam o mesmo. A mesma palavra em qualquer assunto. Todos conseguiam incluir a mesma palavra em lugares diferentes da frase. As frases também eram parecidas entre elas, divididas em várias categorias. Todas tinham a mesma palavra. Às vezes a palavra aparecia também no nome da categoria. A palavra era um hino. A palavra causava fascínio, medo, respeito, desprezo, sobranceria, cuidados, tentações, paranóia, ruído, sussurros. Não tudo de uma vez na mesma pessoa pois o que causava ia-se espalhando e mutando. A sensação era transmitida presa ao som ou à escrita, esse som desenhado. Numa pessoa causou fascínio e depois ruído, noutra causou desprezo e depois sussuros. Noutras, outras coisas, simultaneamente e em tempos diferentes. Não se pode acusar a palavra de ter causado indiferença a ninguém, sejamos justos e coerentes. Apenas às poucas pessoas que não a (ou)viram. Essas pessoas andam a ser procuradas mas ainda não foram encontradas, o tempo urge pois crê-se que vão-se reduzindo a nada aos poucos. Quando a ou(v[ê]em) deixam de ser o que eram, indiferentes.
Mas quem nunca duvidou de palavras que atire o primeiro dicionário! Eu informei-me para escrever este texto sobre palavras, sou um especialista em palavras, digo-vos eu. Sou dos que bate com o punho na mesa por sílabas. Eu próprio já duvidei! São traiçoeiras as palavras, dizem uma coisa mas aquele que vai ali à frente a caminhar pensa em algo e aquela ali no retrato pensa noutro algo. E às vezes está ali escarrapachada, a palavra, preto no branco, mas não. Não é uma coisa única, não há caminho. De repente está ela a caminhar para dentro dele e o retrato a tirar apontamentos sobre palmilhas.
Palavra é som que entra pelos olhos, é imagem que perfura os ouvidos. Fechem os olhos, ainda ouvem o som, tapem os ouvidos, ainda vêem a imagem. Fechem e tapem e ainda ouvem e vêem, é redundante e tardio, a palavra já está dentro da nuca, cresce sem a sentirem. Às vezes põe-nos a palavra na boca e nós, sem darmos por isso, estamos com a boca cheia, o queixo levantado a babar letras e a queixarmo-nos dos que cospem letras. Nem nos vemos ao espelho, esse som que reflete. Talvez sejamos ainda muito novos e inexperientes para poder escrever humanidade em letras maiúsculas. Ainda não conseguimos traduzir bem aquela voz a cheirar a contradição. O outro, nós queremos lá chegar, mas ele está dentro do nosso dicionário, e o dicionário não está por ordem alfabética, embora nós juremos que sim.
Mas não era isto que eu queria dizer, vêem, as palavras enganam. A questão era que havia umas palavras que vinham e ficavam como as tatuagens das crianças: muito vivas nos primeiros dias e depois iam perdendo a cor e rachando com os movimentos da pele. A partir de uma certa altura ainda se sabia em que parte do corpo tinha estado a tatuagem pela diferença de bronzeado e depois disso só na memória. Primeiro sempre e depois cada vez menos. Até que, não se sabe quanto tempo depois, se tornou num zumbido, como as vuvuzelas de um mundial de futebol, e aí o ouvido humano conseguiu deixar de ouvi-la, assim como deixa de ouvir os carros quando adormece várias noites seguidas numa cidade ou as cigarras quando janta vários entardeceres seguidos na floresta. Agora, segundo as últimas informações, está quase extinta dentro de uns livros velhos numa selva de letras enquanto outras tomam posse e proliferam.
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