Samba na Igreja

      Entrei na igreja para ver o Hamilton. Disseram-me: pelo amor de deus (com d maiúsculo), não beba na casa do senhor. Eu concordei mas pequei mal viraram as costas. Foi assim que me ensinaram: o respeito é muito bonito quando há amor. Naquele caso havia bastante, portanto respeitei-me. Jamais minha avó me reprovaria por beber o sangue do senhor na casa dele, ainda mais compartilhando com meus irmãos. Uns que já conhecia, outros com quem só agora comungava. Só ela me chamava daquela maneira: Diogo. Nem o meu irmão, nem o meu pai, nem a minha mãe. Nem eu. Aquele som era uma prece de alguém que me alimentava só com o intuito de me fazer voar. Quando o coração é ateu tem de haver muito respeito pelos antepassados. Ainda lembro da bibliazinha lá em cima da mesa da sala, dentro da couve de porcelana do bordallo pinheiro, junto às canetas e papéis com que eu construía o mundo. De vez em quando dava uma espreitadela, não retive as palavras, mas ainda tenho nos dedos a sensação do papel fininho, frágil, que manuseava com cuidado para que a fé da minha avó não se rasgasse. Nunca desenhei na bíblia. Tenho pena, hoje em dia acho que ela teria gostado que eu colorisse a sua história. 
        Na espera costumeira pelo concerto conheci mais duas pessoas enquanto olhava para o casal atrás de mim a sorrir. Irmãos ou irmãs ou alguma outra vogal que espelhasse o sexo dos anjos naquele momento. Falámos baixinho, para não estalar a talha dourada com uma gargalhada excessiva, contámos as origens geográficas de cada um confirmando que nascemos todos debaixo do mesmo sol, um deles desfolhou um episódio engraçado do qual não me lembro a narrativa, sorrimos por sorrir, e por fim demos aquela palmadinha fraterna nas costas a desejar um bom concerto. 
       O sr. Holanda entrou, recebeu uma chuva de palmas que ecoou pela igreja sobre um mar de gente, sorriu com aqueles cabelos sem gravidade e começou a tocar o bandolim de dez cordas pela milionésima vez na sua vida. Para mim talvez fosse a terceira mas como estava embriagado de prazer não consegui contabilizar exactamente o número de vezes. Não vale a pena encher meia página com descritivos do som porque só o som, ele mesmo, é inteiro. O resto são umas tábuas de madeira que, com calma de agricultor, força de lenhador e mestria de luthier, se constroem e afinam instrumento. Mas na mesma tento. Repertório exímio, técnica implacável e sensibilidade de quem já amou. Como podem ver, sempre se falha na tentativa. Procurem ouvir.
      Uma hora e meia na minha vida. Na vossa também, vocês simplesmente estavam com outros prazeres e dores. Sim, porque dores também tive. Aquela pessoa em pé, encostada a um canto de um banco de madeira com um sorriso no rosto, olhos semi-cerrados e uma igreja reverberando na sua espinha cansada, era eu. Admito, mesmo quando a música é assim incrível, esmoreço por breves momentos, porque atenção de monge só os outros.
      A certa altura, que mau começo. Num ponto do concerto deslarguei os olhos do Hamilton de Holanda e pus-me a pasmar a igreja. A visão era antiga, vi o passado. Não o aconchegante colo da minha avó, mas as poucas vezes em que fui à missa para não levar falta na catequese. Santos piedosos, santas sofrendo, a senhora chorando com o filho nos braços, e jesus sempre na merda da cruz, perdão, dez avé-marias, na crueldade da cruz a sustentar o corpo mutilado. Desçam-no dali e deixem-no tranquilo a ouvir música e a conversar com os deuses. Será que o som não o salva também? Antes de ser escrita a palavra já era oral, e antes de significar já soava. E para meio entendedor, basta nascer! O resto é amor.

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