Um americano no Tejo Bar

     Aquelas noites começam todas da mesma maneira. Primeiro sente-se um rebuliço na barriga, umas borboletas bêbedas no estômago a florear o lusco fusco, e uma vontade de mar. Depois, às vezes, alguém liga. Quando o telemóvel não apita, toma-se a iniciativa e chama-se um amigo, ou sai-se à rua na esperança de encontrar uma amizade. O trabalhador recolhe-se a casa depois de um dia cansativo de labuta, para ganhar forças que suportam o mundo. O boémio busca gastar a energia que lhe ficou do dia. Ou porque acordou tarde ou porque não se fixou em nada verdadeiramente bonito que justifique finalizar a jornada e estender os ossos na cama. Ou porque tendo-se fixado nesse átimo de beleza, como o finalzinho do sol a mergulhar no oceano ou a esconder-se atrás do prédio alto, lá no fundo do horizonte citadino, entusiasmou-se e deseja agora festejar o aparecimento das coisas belas na vida. Festejos simples. Uma conversa, um copo de vinho, um petisco, uma canção, um poema, talvez xadrez, quem sabe um abraço. E criar o tempo que não existe, aquele punhado de horas em que a vida, presa por um fio de cabelo, nos despenteia os sentidos e nos dá de mão beijada o eterno nocturno. Até amanhecer.
     Saí da porta de casa e dirigi-me à minha segunda sala de estar: Tejo Bar. Trinta metros quadrados que habitualmente se transformam numa planície de canções. Desci a Avenida Almirante Reis, cruzei a Praça do Intendente, (antigo) antro de drogas e prostituição que agora se transforma ao som da bolha imobiliária, caminhei calmamente pela Rua do Benformoso a apreciar o cheiro da chamuça, a lembrar-me do sabor da vitela do Grupo Excursionista dos Amigos do Minho, agora fechado, e a dar uma espreitadela na vitrine com panos africanos coloridos feitos na Holanda. Segui pela esguia Rua do Terreirinho, acenando aos muçulmanos que saíam das orações, e enfrentei a íngreme Calçada de Santo André, santo padroeiro da Ucrânia e da Grécia, que pelo esforço dos meus múltiplos passos pediu ao seu irmão São Pedro para não trazer chuva naquela noite boémia. No topo cruzei a Travessa do Açougue e entrei na Rua do Salvador passando os olhos pelos preços do restaurante vegano. Entrei pelas Escolas Gerais adentro sem ser atropelado pelo eléctrico, e parei à frente da Casa do Concelho de Pampilhosa da Serra, onde àquela hora se ensaiava o rancho. Ouvi duas modinhas e segui, passando pela Casa da Liberdade Mário Cesariny, que é sempre bom presságio quando se viaja à noite. Virei para a Rua do Vigário e, como a sede já era muita, parei na Típica de Alfama a beber uma cerveja e a apreciar os homens a ver a bola ao som de rock português. Terminada a tarefa andei trinta metros e cheguei ao meu destino: Beco do Vigário, a nascente do Tejo.
     Cumprimentei a Mira, que respondeu com um sorriso detrás do balcão enquanto fazia um gin e servia uma cachupa, e disse olá ao Jon, que me abraçou e me pôs um grogue nas mãos. Aqueci. Olhei para o piano desafinado e abandonado lá no canto e toquei uma canção. Como os meus dotes pianísticos deixam algo a desejar, aproveitei a chegada do Olmo para o raptar e lhe passar uma guitarra. Olmo, nome de árvore, fibra basca, coração de ouro e exímio guitarrista. Amigo fiel. “Tantas águas rolaram…”, flutuámos um pouco e saí à rua a fumar um cigarro. À boca de cena, com as árvores do jardim infantil ao fundo, estava o Nico. Nicolás, mousse italo-argentina, bom cozinheiro, cantautor de mão cheia. Amigo seguro. Ao seu lado, um sujeito alourado, de bigode castiço e uns bonitos óculos de sol, no bolso da camisa, que eu elogiei. “They’re yours” e ofereceu-me as armações, já que as lentes não serviam aos meus olhos míopes. Mr. Jessie Jackson, americano com familiares perdidos pela Europa, a cruzar Lisboa por uma noite, amante da canção. Amigo futuro. Ombreava com uma correia improvisada um guitalele nu, fusão de guitarra e ukulele, e trazia duas dedeiras metálicas: uma no polegar e outra no indicador. Conversa puxa assunto, entusiasmei-me e rapidamente deixei cair o meu preconceito involuntário em relação ao seu povo, conquistado dos tempos em que trabalhava na recepção de um hostel lisboeta e atendia dezenas de adolescentes americanos, saídos pela primeira vez do seu país. Irritava-me profundamente o sotaque e as expressões “oh my gosh!” e “it’s like”, repetidas em todas as frases. Contente por ser recebido com afabilidade, o Jessie, presenteou-nos com duas composições suas: uma em inglês e outra em espanhol americanizado, particularmente engraçado. Eu, o Olmo e o Nico, espantados com a faina do convidado, encaminhámo-lo para junto do piano, onde quem quer tocar se reúne. Por lá ficámos a navegar, não me perguntem quanto tempo. 
     Quando atracámos, ainda embriagado pela última música tocada, dei por mim a pensar que o turismo é a pirataria da multiculturalidade, o erro dos viajantes e a vitória do souvenir. Aquilo que fizémos não vem nos postais, nos guias turísticos, nem nas estatísticas da alfândega, e ainda bem. Mais tarde, ao caminhar pelas ruas de Alfama, ouvindo o bom augúrio do canto das aves madrugadoras e das vozes cantadas dos companheiros de viagem, senti que tínhamos recolhido a âncora da distância e içado as velas da amizade. Dormi tranquilo.

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