Quota Portuguesa

          Comecemos por dizê-lo: como é bom ser adotado! 
         A janela estava um pouco embaciada, passei a mão para ver melhor mas a humidade era do lado de dentro. Confundia-se com o meu fumo que subia, tal como eu permanecia, do lado de fora. Na sala estavam a conversar as pessoas de quem ainda agora me tinha despedido temporariamente para fumar um cigarro no pequeno pátio. Cambada de brasileiros! Meus amigos, minhas amigas. E não valia a pena mandá-los de volta lá para a terra deles porque dois deles já iam embora, e não era nada agradável a pontada que me dava no peito. Fiquei com inveja dos xenófobos, mais duro do que odiar pessoas diferentes de nós é amá-las e elas irem embora. Para longe.
        Digamos também: como é difícil viver num país que não é o seu! Principalmente quando se nasceu lá. Papéis, do rascunho, à carta, ao passaporte, como nos atravessam, nos marcam  e nos proíbem.
        Não sei se a opinião é unânime mas, para mim, José Afonso e Chico Buarque sempre foram primos. Tocavam na mesma aparelhagem, ficavam assim encostadinhos um no outro, booklet com booklet, caixa com caixa, até parecia que conversavam em rima. Vi-os em sonhos a comer um bacalhau com mandioca frita e grelos de nabo a acompanhar, conversa amena, ah e tal a censura, eu é que sei o que é o amor, está calado oh engatatão, como é que vai a guerra, comeste pouco, toma lá mais um pouco, abrimos mais um tinto, epá tu é que sabes, se abrires eu bebo, ouviste a nova canção do Caetano, olha aí a luta de classes, a juventude tem é que se revoltar, não percas o foco, toca lá uma canção, etc, etc, etc.
          Podemos afirmar: quando é bom não se faz de propósito. Aparecem-nos à frente com qualquer assunto que traduzido em pergunta significa: queres ser meu amigo/minha amiga? E, nesse momento, não dá para não gostar dessa pergunta e da pessoa que a faz. A resposta não vem logo nem nunca chega quando queremos. Mais tarde se vai entender se foi um sim, retumbante ou tímido, ou um não que se esvaiu pelo quotidiano. 
          Quem é que me mandou estudar? Depois da licenciatura prometi a mim mesmo que nunca mais dava o meu corpo ao academismo. Mas era só uma pós-graduaçãozinha, um ano, entras-estudas-e-sais, e afinal já tinham passado oito anos desde a última vez. A maturidade e a calvície não me iam deixar desmotivar perante o peso insuportável da falsa seriedade das faculdades. Achei que o pior que podia acontecer era morrer de tédio. Aí vem aquela cambada!
          Eis uma sentença: exceto na floresta, no deserto, ou no pico da montanha, o melhor dos lugares são as pessoas, e o melhor das pessoas são os lugares que nos deixam ocupar dentro de si em troca justa pelos lugares que as deixamos ocupar dentro de nós.
         Assim como assim, foi o acaso, a escrita, a paixão pelo samba e a lei da amizade que nos juntou: quem encontra está atento, quem escreve descreve, quem dança abraça, quem gosta cuida. Cambada de brasileiros! Vim a perceber naquele grupo de cariocas e paulistas, que eu era o equivalente à quota portuguesa. Brincava que o serviço de estrangeiros e fronteiras, famoso Sr. SEF, não entrava ali naquelas noites regadas a vinho, literatura, queijo e conversa porque eu, estimado cidadão português com sangue cristão, árabe e judeu, estava presente para preservar a dignidade da pátria, auxiliar invasões pacíficas e mostrar como se bebe uma garrafa de tinto sem cambalear excessivamente. Tudo dentro dos conformes! O Sr. SEF não ligou muito a isso, aparentemente não se rege pelas mesmas leis que nós. Os brasileiros que tinham tetravós aqui no velho continente foram abraçados carinhosamente pela burocracia (parece que os genes são a melhor porta de entrada). Os outros, brasileiros sem ascendência europeia detectável, tiveram que arranjar um contrato para garantirem o seu visto depois de meses à espera para uma reunião com ele, o Sr. SEF, homem ocupado. Parece que é preciso um carimbo para ter contrato ou arranjar um contrato para ser carimbado. Um dilema a ser resolvido pelos mais astutos juristas. Trabalhar é outra história, se todas as pessoas sem papéis em dia não trabalhassem um dia, creio que esta cidade parava ou sentia a sua falta. Eu também vou sentir a falta dos que agora se vão embora, não pelos seus serviços mas pelos seus abraços.
            Em jeito de conclusão: o fim da amizade dá-se apenas no fim da lembrança. Por isso é boa, por isso é dura. Enquanto estiver num cantinho do crânio a imagem daquele sorriso desavergonhado, o som daquele desabafo, o toque daquela mão no pescoço e a sensação de uma lágrima que alivia, a amizade vive e cumpre a sua função civilizadora. É a esse país cheio de amigos e amigas que se pode chamar um país civilizado.
        Já não somos os mesmos. Ao nos conhecermos e nos enturmarmos, mudámos. Mudaríamos de qualquer maneira, o tempo é rei, mas é melhor transformarmo-nos em conjunto, beirados uns nos outros. Os grupos são entidades vivas e autónomas, sem fronteiras bem definidas, e por isso talvez nunca terminem. Alguém se afasta daqui, outrem se aproxima dacolá, um casal se desfaz em dois unos, outros dois se fundem, altera-se a morada, o bar costumeiro muda de nome, o curso termina, muda-se de emprego, sonhos importantes são realizados, outros perdem importância, a realidade abate-se lenta e abruptamente. Na hora da despedida “...as vozes embarcam/ num silêncio aflito/ quanto mais se apartam/ mais se ouve o seu grito”, mas, lá está, se eu fosse o rei “a gente era obrigado a ser feliz”.
           Finalizemos tranquilamente: catupiry não é queijo!

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