A guerra do meu tio


         O meu tio fala muito da guerra. Especialmente às refeições, mas qualquer hora é apropriada. Com ele percebi desde criança que as guerras não são como nos filmes, mesmo que sejam realistas e bem-feitos, com fotografia impecável e correção de cor. Na guerra real ao que parece as pessoas vão morrendo devagar, repetidamente e durante muito tempo. A mina que pisaram é a mesma mas morrem primeiro durante as entradas, às vezes ainda estão vivas durante o prato principal, para logo a seguir, na sobremesa, morrerem outra vez. Noutras alturas deixam de respirar nos pesadelos repetidos. Ao que parece a guerra não é uma coisa que acabe para quem lá esteve, a guerra é mais um estado de espírito, uma memória, quase um membro a mais no corpo, um terceiro braço cheio de cortes e nódoas negras no qual se vai trocando o penso todos os dias do resto da vida. Todos sabemos como são as ideias, elas vão trotando de um lado para o outro do cérebro e é como se estivessem todas ligadas e fossem muito íntimas umas das outras, quase amantes, mesmo quando nunca se conheceram. Qualquer assunto leva o meu tio a falar sobre a guerra: se alguém foi à casa de banho durante a refeição talvez se lembre daquele soldado que foi verter águas sem pedir autorização e acompanhamento armado, e acabou emboscado com um tiro certeiro; se alguém enche o copo de vinho recorda-se do quanto se bebia depois das operações no mato para que os tiros deixassem de soar na cabeça por umas horas; se alguém pisa num pedaço de queijo que caiu da mesa, ele lembra-se invariavelmente do Arsénio, o primo que pisou uma mina e se esvaiu em sangue antes do helicóptero chegar.
        O primo Arsénio é a pessoa que mais demora a morrer. Morreu muito novo mas de alguma maneira estranha para mim ele continua vivo. Vai morrendo pouco a pouco e nunca deixa de estar presente nas ocasiões especiais da família. Sempre se sentou à mesa nos natais, nas sardinhadas de Verão, nas festas de aniversário, tanto dos adultos como da criançada que hoje já foi substituída pela nova geração. Eu nunca o vi presencialmente, a guerra foi antes de eu me lembrar da vida, mas o primo Arsénio para mim tem vinte e poucos anos, é magro e alto como o meu tio, não fala muito mas acena com a cabeça em concordância enquanto ouve as histórias de guerra, come de forma frugal, e falta-lhe alguma parte do corpo que nunca consigo ver qual é. Acredito que uma perna mas a imagem é um pouco baça e às vezes vejo-o a caminhar, então não sei bem. Também todos sabemos que as memórias são tramadas, se com os vivos de carne e osso já é difícil não os pintar de tantas cores que eles nunca vestiram, quanto mais com os mortos, ou com aqueles que estão sempre a morrer. A mãe do primo Arsénio, a minha tia-avó Felicidade, nunca me falou dele. Não sei como ele era para ela mas deduzo que o mesmo que muitos filhos para muitas mães: um pedaço grande de tudo. E nesta morte continuada para mim há um facto: os helicópteros atrasam-se sempre. Seja nos incêndios ou a ir buscar o primo Arsénio, nunca estão onde são precisos na hora certa. A tecnologia ainda está obsoleta, os helicópteros chegam sempre quando as chamas já lavram desenfreadas e o primo Arsénio já se esvaiu em sangue.
          Outra coisa que creio ter aprendido ao longo dos anos, a ouvir o meu tio sobre tiros, homens fardados e madrinhas de guerra, é que o bem e o mal são conceitos muito vagos. Devemos perdoar quem matou? Devemos respeitar quem morreu? E se quem matou também morreu? E se quem morreu também matou? Uma guerra parece ser sempre a derrota do diálogo e a vitória da força bruta aliada a interesses mais refinados. E mesmo que historicamente se acredite que uns estão do lado errado e outros do lado certo, se é que alguma vez isso existiu, os soldados de todos os lados estiveram lá a dar o peito às balas e alguns a encherem-se delas. Muitos contrariados, muitos obrigados, muitos encharcados em propaganda, muitos com fantasias nacionalistas, alguns com sede de sangue. É sempre mais fácil julgar de fora quando tudo já passou e estamos a assistir guerras no conforto do sofá em que os bons e os maus vestem fardas diferentes. 
        Os combatentes que pisam o terreno são sempre carne para canhão, mesmo aqueles que concordam com a guerra em que foram alistados. As decisões são a maior parte delas assinadas em secretárias sem lama, em salas com retratos pomposos e imaculados e com palavras que os soldados não usam no quotidiano. E quando as altas patentes se reformam, e as ideias que defendiam ficam velhas, e às vezes vergonhosas, os soldados continuam a acordar à noite emboscados por um pesadelo sem pernas. E por mais que se fale, que se cale, que se beba, que se durma, aqueles que não conseguiram proteger ou que tiveram de matar continuam a morrer. E estão todos reunidos na memória. Inimigos e amigos vivem juntos depois de fecharem os olhos.
         O meu tio fala muito da guerra. Ainda bem, fico mais tranquilo. Imaginem quem guardou aquelas explosões e aquele mato, aquelas entranhas todas dentro do peito. O meu outro tio nunca me falou da guerra mas sei que alguma coisa também morre dentro dele todas as noites.

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